Um exercício fascinante de preparação, ousadia e capacidade de lidar com o imprevisível
Entrevista com Júlio Fiadi
Conheci o Julio em outubro de 2018 assistindo sua palestra num evento que a Vistage promove todo ano para os seus membros, em São Paulo. Fiquei muitíssimo bem impressionado não somente por suas expedições aos polos mas, em especial, com os links que ele fez dessas experiências com o dia a dia de nossas empresas e de nossas vidas. Outro fato me chamou atenção: a simplicidade e a espontaneidade de sua fala. Parecia ter chegado da viagem no dia anterior e, descontraidamente, contava para um grupo de amigos o que durante aqueles dias especiais havia ocorrido. Simplicidade, objetividade e conteúdo, sobressaíam. Nas reuniões de fim de ano sempre procuro proporcionar aos membros do grupo de empreendedores e executivos que coordeno no Rio de Janeiro palestras cujos temas sirvam de reflexão sobre aquilo que devemos cessar, continuar, começar ou até mesmo recomeçar, no próximo ano. Aquelas expedições, e a forma com que Julio as descrevia, me pareceram extremamente adequadas e, em boa medida, revigorantes para a ocasião. Ocorre que havia um obstáculo a superar. O orçamento. O valor da sua, por mim muito desejada, expedição ao Rio não cabia no nosso orçamento. Como fazer para viabilizá-la? Por sorte ele mencionou, na palestra da Vistage que assisti em São Paulo, o nome de um dos patrocinadores de suas expedições: Dr. Aziz Chidid, do Grupo Memorial e Assim Saúde, operadoras de Planos de Saúde que atuam no Rio de Janeiro. Como o conhecia, por ter sido o CEO do Grupo Assim há alguns anos atrás, não hesitei em ligar para ele. Empresário visionário e sempre generoso com as boas causas, prontamente atendeu meu pedido viabilizando a vinda do Julio desta vez, ao Rio de Janeiro. Para registrar alguns dos pontos relevantes de suas aventuras aos dois polos e de sua palestra, naquele dezembro de 2018 para o nosso grupo, solicitei que ele me concedesse uma entrevista cujo teor, segue abaixo:
1 – CRM: Você comenta em sua palestra e no seu livro que Shackleton sempre foi um dos seus heróis preferidos. O que mais te encantou foi o espírito aventureiro dele ou as suas tentativas de chegar ao Polo Sul, considerando todos os obstáculos envolvidos?
Julio: A minha maior admiração por Shackleton vem das incríveis lições de liderança e sobrevivência que ele transmitiu. Liderava pelo exemplo, e punha a segurança de seus homens acima de tudo. Um homem muito à frente do seu tempo.
2 – CRM: Shackleton apesar de ser considerado o mais famoso explorador daquela época (inicio do século XX) não foi o primeiro a chegar ao Polo Sul. O que fez de diferente o norueguês Amundsen para chegar à frente do inglês Scott e do próprio Shackleton?
Julio: Não dá para afirmar que Shackleton era o mais famoso explorador polar daquela época. O que afirmo é que entre o pessoal das expedições polares atuais, ele é de longe o mais admirado. Shackleton abriu o caminho em direção ao Polo Sul, e foi quem provou ser possível alcançá-lo. Amundsen foi especialmente eficiente no planejamento e execução da sua expedição. Era mais experiente que Shackleton e Scott, pois além de ser norueguês (a Noruega é muito mais setentrional que a Inglaterra), já havia participado de diversas expedições ao Ártico e uma importantíssima à Antártica liderada por Adrien de Gerlache, oficial da Marinha Real Belga, no comando do navio de pesquisa RV Bélgica. Scott foi um desastre. Em minha opinião, não chegava aos pés de Amundsen ou Shackleton.
3 – CRM: Hoje em dia, muito se fala sobre liderança. Ao que parece na expedição com o navio Endurance à Antártica, Shackleton demonstrou conhecer muito do assunto. Você pode citar alguns exemplos disso?
Julio: Existe um velho ditado que diz: “Os grandes marinheiros surgem com as grandes tempestades”. Tempestades no sentido figurado, na expedição de Shackleton, não faltaram. A preocupação dele com a segurança da tripulação sempre estava em primeiro lugar. Numa das ocasiões, após o Endurance ficar preso no gelo, quando se deram conta que teriam que atravessar a noite polar, sorteou os cinco trajes de ataque ao polo entre a tripulação. Ter ou não estes trajes podia ser determinante entre a vida ou a morte. O detalhe é que Shackleton sorteou-os excluindo o seu nome. Esta verdadeira preocupação com o bem estar da tripulação fez com que ele, pouco a pouco, fosse confirmando sua já famosa condição de líder.
4 – CRM: Expedições envolvem pessoas. A busca por um objetivo comum requer trabalho em equipe. Quais lições podemos retirar dessas expedições sobre como manter uma equipe unida e motivada?
Julio: Michael Jordan, considerado o maior jogador de basquete de todos os tempos, cunhou a frase: “Talentos vencem jogos; trabalho em equipe vence campeonatos”. Shackleton bem sabia disso. Agia sempre com base em uma de suas máximas: “o homem precisa de um novo objetivo quando o anterior vai ao chão”. Desta forma, quando o Endurance teve sua passagem bloqueada pelo gelo disse para a turma: “agora vamos abrir nosso caminho para chegar à Antártica”; quando ficou aprisionado pelo gelo: “agora vamos jogar futebol”; quando veio a noite polar: “agora vamos fazer sessões de palestras baseado nas histórias de cada um”; quando iniciou o descongelamento com a chegada do verão e os blocos de gelo começaram a pressionar o casco do navio até ele adernar e ir a pique, disse: “agora vamos voltar para casa!”. Este tipo de atitude gerava sentimento de equipe e motivação. Sempre ficou muito claro para todos os membros da expedição, que a prioridade número um de Shackleton era trazer seus homens vivos de volta pra casa. Isto gerava um nível de fidelidade de seus homens, jamais alcançado por outras equipes contemporâneas.
5 – CRM: O que pode diferir um participante dos demais numa expedição deste tipo? Sua preparação, espírito de grupo, algo mais?
Julio: Proatividade, define um pouco deste espírito tão admirado por Shackleton. O prestígio de um homem se dá pelo que ele faz além daquilo que se espera dele. Isto é valido para um tripulante numa expedição ou para um profissional em qualquer atividade ou empresa.
6 – CRM: Você já esteve em diversas expedições aos polos. O que você destacaria como a maior diferença entre as de hoje comparativamente àquelas feitas por Amundsen, Scott e por Shackleton, no século passado?
Julio: Basicamente o que mudou foi a comunicação. Hoje posso falar com minha mulher e filhas por telefone satelital, em qualquer lugar do planeta. Antes era um isolamento total do resto do Mundo. Não havia a possibilidade de pedir socorro ou de informar posições. O mundo demorava um ano para saber se uma expedição tinha sido bem sucedida ou não. Localização ficou bem mais fácil com o GPS. Mas os exploradores antigos eram excelentes navegadores e se viravam muito bem com sextantes. O resto continua muito parecido.
7 – CRM: Você somente conheceu a neve aos 31 anos. O que fez você somente a partir desta idade iniciar a realização de seus sonhos de adolescente?
Julio: Falta de recursos. Comecei a trabalhar aos 14 anos. Só fui ter dinheiro e tempo para poder começar a viajar para as altas latitudes depois dos trinta anos.
8 – CRM: Você conta a história de um artefato criado para urinar por um dos membros numa expedição. Conta também da reação que uma das mulheres teve quando apresentado a esta “inovação”. Fale-nos um pouco sobre a dificuldade de urinar a uma temperatura de 35º negativos e sobre a resistência que muitos têm de estarem abertos à novas ideias e o que isto pode causar?
Julio: A 35 ou 40 graus abaixo de zero, é muito fácil ter um congelamento. O homem, antes de mais nada, precisa verificar a direção do vento, e virar de costas para ele, pois se o vento bater diretamente no seu pênis nestas temperaturas, o órgão vai congelar e depois gangrenar. E para continuar vivo, vai ter que amputá-lo. Para as mulheres que precisam abaixar as calças, e se agacharem, pode ser ainda mais complicado. Numa expedição em grupo para o Polo Sul, uma das mulheres cortou um tubo de protetor solar longitudinalmente, e fez com isto um artefato, que introduzido pelo zíper dentro da calça e funcionando como uma calha permitia que as mulheres urinassem em pé, sem correr nenhum risco de congelamento.
Apesar de ser uma solução simples e eficiente para eliminar um enorme risco, uma das mulheres preferiu não utilizar o artefato. Minha conclusão é: quem não está aberto a novas ideias, está o tempo todo perdendo oportunidades.
Em tempo, a garota que recusou o dispositivo abandonou a expedição por problemas de congelamento.
9 – CRM: E por falar em novas ideias, conte-nos um pouco sobre o novo trenó que você está desenvolvendo em substituição à barraca, utilizada desde o início do século XVIII em expedições deste tipo?
Julio: Desde os tempos de Nansen, Shackleton, Amundsen e Scott, todas as expedições polares que se deslocaram a pé sobre gelo e neve, usaram barracas para dormir. Não foi diferente quando esquiei o último grau de latitude nos dois extremos do planeta realizando o sonho de chegar caminhando aos polos Norte e Sul geográficos da Terra. Ter que transportar uma barraca, montá-la ao final de cada jornada diária, e desmontá-la no início de cada dia, me parecia uma ideia obsoleta. E pior: quando o vento começa a soprar, é preciso parar e montar a barraca, antes que ele aumente muito e fique perigoso montar o abrigo de tecido. Se numa tempestade polar, o vento arrancar a barraca de suas mãos durante a montagem, você é praticamente um homem morto. Em uma expedição polar, onde você fica, dia após dia, de 10 a 12 horas arrastando um trenó, a cabeça fica com bastante tempo livre para pensar. E foi assim que me questionei se não haveria uma forma mais eficiente de se deslocar pelas regiões polares. Imaginei então, um trenó habitável que, além de transportar tudo o que eu precisasse durante uma expedição, também me servisse de abrigo para os pernoites, e que estivesse sempre pronto para me proteger se uma inesperada tempestade me pegasse de surpresa.
Foi assim que surgiu a ideia de construir um trenó polar habitável.
10 – CRM: Mas quando você fala num “trenó habitável”, para um leigo como eu vem logo a ideia de uma casa, algo maior que um trenó. Qual o seu peso, como transportá-lo?
Julio: Você tem razão. O peso a ser transportado, é fator decisivo para o sucesso de qualquer expedição polar. Ainda mais quando a tração é feita por um único homem esquiando, sem cães ou motores. A ideia só funcionaria se o trenó habitável tivesse um peso próximo ao de um trenó tradicional somado ao de uma barraca.
11- CRM: Você tem patrocinadores para suas expedições e para a confecção deste seu novo trenó habitável?
Julio: Embora a maioria das minhas expedições tenham sido bancadas com recursos próprios, para o desenvolvimento da capsula polar tive o apoio técnico da Barracuda e da Holos. Para os custos de logística da expedição e apoio médico, tivemos o patrocínio do Grupo Memorial Saúde. Também tivemos o apoio técnico da Curtlo e da Solo, empresas brasileiras com produtos de ponta para o ramo das expedições.
12- CRM: Qual foi o objetivo desta nova expedição utilizando a capsula?
Julio: Partindo de São Paulo, fomos até Punta Arenas cruzando a Patagônia numa Van, para embarcar a capsula no avião russo Ilyushin 76, e voar até a Antártica. A ideia era tentar alcançar o Polo Sul geográfico, andando sozinho desde o litoral do Continente Branco, uma distância aproximada de 1200 quilômetros. Em novembro de 2008, o Ilyushin 76 pousou na pista de gelo do acampamento base de Patriot Hills, no interior da Antártica, onde o Igor e eu desembarcamos nossa capsula polar, e fizemos os preparativos finais para a empreitada. No dia seguinte, carregamos o trenó num avião Twin Otter, equipado com esquis no lugar das rodas, e voamos para Hercules Inlet, uma pequena baia sobre o mar congelado, onde fui deixado sozinho com minha capsula vermelha, e iniciei a jornada em direção ao Polo Sul.
13- CRM: E a capsula saiu-se bem?
Julio: Tive dias espetaculares caminhando pela Antártica. Percorri o pior trecho de toda a viagem, com quase mil metros de desnível e a maior concentração de fendas de todo o percurso. Por dois dias, a capsula foi castigada com uma tempestade polar com ventos estabelecidos de 150 kmts/h, e rajadas acima de 180 kmts/h, sem sofrer nenhum dano. Oito barracas do acampamento base foram destruídas em Patriot Hills na mesma tempestade. Além de protegido, eu tinha telefone, computador conectado na rede (toda a eletricidade fornecida por painéis solares), mesa para escrever e comer, e até mesmo um confortável toilet, protegido do vento gelado. Infelizmente, após concluir a primeira etapa da viagem, constatei um pequeno congelamento em um dos dedos do pé esquerdo, que foi confirmado pelo médico do acampamento de Patriot Hills. Nada muito sério, mas que com certeza iria se complicar, caso eu continuasse caminhando 10 a 12 horas por dia, como eu vinha fazendo, em temperaturas de até 35 graus negativos, como tivemos em alguns períodos. Ter superado a tempestade e o mais difícil trecho de toda a viagem, me fez acreditar que eu tinha grandes chances de chegar ao polo. Tal entusiasmo me levou a querer continuar, sem me preocupar muito com meu dedo.
14- CRM: Alguma razão para explicar este congelamento?
Julio: Eu estava usando a melhor bota polar do Mundo, feita por uma tradicional marca canadense. Mas nestes tempos de globalização, você não sabe exatamente onde cada parte de um produto é fabricado. E esta bota é basicamente constituída de duas partes: a bota em si, com sua sola grossa e cano alto, e o isolamento interno, que é quase uma outra botinha interna, feita com um material isolante térmico, que se parece com um feltro grosso. A bota interna apresentou um defeito na costura (pontos que se soltaram) exatamente no lugar onde estava o meu único dedo que congelou. De volta ao Brasil, meu amigo Leonel Brites, que é um polímata e, entre outras coisas, é bom costureiro, desmontou-a e refez manualmente suas costuras. Voltei para a Antártica com as mesmas botas, e ainda tenho todos os dez dedos nos meus pés.
15 – CRM: E afinal, você conseguiu chegar ao destino traçado mesmo nestas condições?
Julio: Os conselhos dos médicos, de que eu deveria parar, levaram-me a tomar esta difícil decisão. Apesar disso, a capsula polar provou ser um projeto viável, e podemos nos orgulhar de ter levado o primeiro trenó habitável rígido, a se deslocar pelo continente gelado. Outros expedicionários também solitários tiveram sérios problemas com suas barracas durante a mesma tempestade, enquanto eu estava seguro e confortável dentro da minha casinha vermelha. Percorri no mesmo período, distâncias maiores ou iguais aos meus colegas solitários com trenós tradicionais. Nunca menores. As centenas de quilômetros que treinei arrastando pneus dentro do estádio do Pacaembu mostraram-se muito eficientes na minha preparação física. O resultado foi comprovado pelas milhas diárias que consegui percorrer em condições adversas. Tenho o sentimento de ter feito corretamente a lição de casa, mas não alcancei o objetivo final, que era chegar sozinho com a cápsula ao Polo Sul. Vou tentar novamente.
16 – CRM: Como lidar com o risco da morte em relação à sua família? Você faz seguro de vida?
Julio: É irônico, mas nunca fiz seguro de vida, embora já tenha sido chamado para palestrar para diversas Cias de Seguro. O seguro que faço é me preparar o máximo possível para conseguir voltar pra casa respirando. Minha prioridade UM, é voltar pra casa inteiro. Mas sei que um dia, pode não dar certo…
17 – CRM: Você enfatiza a importância da preparação física e de uma excelente logística para o sucesso destas aventuras. Todo atleta de ponta inclui o aspecto psicológico em seu cardápio de preparação. Algo a dizer sobre isto?
Julio: Não tenho preparação psicológica. Ganho confiança, e minha família e amigos também, encarando com toda a seriedade e dedicação a preparação da expedição. Procuro não deixar nenhum detalhe pra trás. Quando percebo que fizemos o máximo possível, ganho uma confiança praticamente inabalável.
18 – CRM: Em suas expedições alguém já faleceu? Como vocês lidam com este percalço?
Júlio: Já perdi diversos amigos e conhecidos em expedições polares e nas montanhas. Até agora nenhum que estivesse na mesma expedição que eu. Mas sei que é muito difícil de superar, pois quando o grupo é coeso, todos os membros sentem-se responsáveis pela vida dos outros. Isto torna uma perda muito mais dura de suportar.
19– CRM: A propósito, e o Urso Polar?
Júlio: É o dono do Ártico. Ao entrar no seu território, você pode virar seu almoço… Vivenciei uma situação com ele por perto. Avistei uma foca, que é um apetitoso chamariz. Contei para meus colegas de expedição que não acreditaram que eu a tivesse visto. Foi preciso nos depararmos com pegadas frescas de um urso no gelo para que todos passassem a acreditar naquilo que havia visto e também, no perigo eminente. Os ursos, assim como todo predador, atacam pelo fim da fila. Por conta disso, batemos todos os recordes de velocidade a partir daquele momento. Ninguém queria ficar para trás, ser o último da fila. Para mim este foi um exemplo de que devemos sempre trabalhar com metas ambiciosas. Antes da expedição poucos acreditavam que conseguiríamos cumprir as distâncias diárias programadas. O urso nos fez bater todas as metas e ainda superá-las com folga.
20 – CRM: Você conta em seu livro que passou o Reveillon do milênio na Antártica longe de sua mulher e de sua primeira filha, ainda pequena. Pelo visto você nunca parou e não pretende parar com estas expedições. Como Shackleton dizia: “um homem precisa sempre de uma nova meta quando a anterior vai ao chão”. Portanto, novos desafios parecem fazer parte de sua razão de viver. Como você administra isto em sua casa, junto à sua esposa, junto às suas filhas?
Julio: Não é muito difícil administrar isto, porque quando minha mulher e minhas filhas me conheceram, já era assim. Não houve mudanças de comportamento nem de expectativas. Mas passar 100 dias longe das mulheres que amo, é uma das coisas mais difíceis de suportar. Contudo aprendi que a distância tem a virtude de valorizar os momentos que passamos juntos. Que não são poucos e cada vez melhores.
21 – CRM: Você finaliza sua palestra falando que: o essencial para estas expedições e também para a vida pessoal e empresarial está apoiado em três pilares: conhecimento, condicionamento e visão positiva de futuro. Você poderia falar um pouco sobre cada uma delas?
Julio: O Conhecimento te ajuda muito a enfrentar problemas em expedições polares: conhecer a identificação de fendas no gelo, o comportamento dos ursos polares, as técnicas de sobrevivência naquele ambiente, os equipamentos e todas as suas possibilidades de múltiplos usos. Conhecer os casos de dificuldades passadas por outros exploradores e como fizeram para sair das enrascadas. E também o conhecimento dos casos em que as coisas não deram certo, para não cair nas mesmas armadilhas. O Conhecimento adquirido de forma empírica ou do estudo das experiências dos outros, pode fazer a diferença entre voltar andando inteiro pra casa, ou nem voltar. Não é diferente no universo corporativo ou mesmo na vida familiar. Conhecer muito bem o seu produto, seus colaboradores, o cliente, o consumidor final, o concorrente, o mercado e suas peculiaridades. Conhecer os gostos da sua mulher, os amigos e os professores dos seus filhos, os seus vizinhos. Conhecer o comportamento dos seus amigos e familiares, para saber identificar que algo pode estar errado, e chegou a hora de você ajudar. O Conhecimento é provavelmente nosso maior pilar de sustentação.
O Condicionamento é botar o conhecimento em prática. É ir a campo aplicá-lo. Ir para a Antártica e pular do barco na água gelada, nadar até um bloco de gelo flutuante e subir nele para escapar da morte. Somente fazendo isto cercado por apoio de segurança, é que você vai estar pronto para escapar da arapuca quando realmente cair nela. Dormir sozinho na barraca com 40 graus abaixo de zero, desmontar e montar seu fogareiro, tirando e colocando as luvas rapidamente para não perder os dedos. Depois fazer isto novamente com os olhos vendados, para o caso de ter que sobreviver no caso de você ser acometido pela chamada “cegueira das neves” – que te pode te cegar por dias. Simular estas situações em ambiente hostil aumenta enormemente suas chances. Andar no chão sujo da fábrica para entender todo o processo de produção e suas peculiaridades. Visitar seus clientes e consumidores finais, pessoalmente. Sentar-se ao telefone e tentar fazer uma venda (ou compra), exatamente como fazem seus clientes ou colaboradores. Acompanhar pessoalmente todo trajeto do seu produto, da embalagem na fábrica até o consumidor final, para entender e tentar aperfeiçoar toda a logística envolvida, e solucionar os problemas que aparecem no processo. Sem enfiar a mão na massa, vai ser difícil acertar o ponto.
Algumas pessoas falam em ter fé. Outras em ter esperança. Prefiro tratar disto como uma “Visão Positiva de Futuro”. Existe um ditado do mundo náutico que diz: “Prepare-se para o pior e espere pelo melhor”. O entusiasmo é contagiante e nos empurra pra frente. O derrotismo também contagia e freia nosso avanço ou até nos empurra pra trás. No platô antártico e na calota polar do Ártico, caminha-se muitos dias sem se ver nada além de gelo. Nenhuma montanha ou qualquer outra referencia geográfica aparece para quebrar a visão monótona do horizonte gelado. Alguns exploradores já caíram na armadilha causada pela monotonia, e perderam a motivação e entusiasmo tão importantes para alcançar o Polo Geográfico. Quando você começa a não acreditar que vai chegar, o Polo começa a ficar mais longe. O que mais mata náufragos lutando pela sobrevivência numa balsa salva vidas em alto mar, não é a fome, a sede, tempestades, raios ou tubarões. Os que morrem primeiro são os que passam a não acreditar que sobreviverão às adversidades, e desistem da luta. Estes fatos se repetem em inúmeros relatos de grupos que passam diversos dias em dificuldades, lutando pela sobrevivência. Pode ser na alta montanha, no oceano, na selva ou na calota polar. É até mesmo uma confirmação da teoria da Evolução da Espécie de Darwin, onde ele diz que em situações deste tipo, os que sobrevivem não são os mais fortes, mas sim os que se adaptam mais rapidamente às mudanças. Mulheres com filhos pequenos acreditam que seus filhos dependem da vida dela, e por isto fazem qualquer coisa para manterem-se vivas. São as campeãs de sobrevivência em situações adversas superando, de longe, homens mais fortes fisicamente. Perder a Visão Positiva de Futuro pode ser perder a chance de sobrevivência.
22 – CRM: Certamente, muitos perguntam para você: o que leva uma pessoa a se expor a tantos desafios? A tantos fatores de risco e, convenhamos, a esta provação física?
Julio: Eu tinha um amigo, já falecido, que era alpinista. Aliás, morreu na montanha. Ele certa vez me contou que quando lhe faziam este tipo de indagação, ele respondia de forma delicada, mas muito objetiva: “se você está fazendo esta pergunta, qualquer coisa que eu disser não vai saciar a sua curiosidade”. Gosto muito de me aproveitar desta resposta dele porque mostra o quão as pessoas são diferentes. Gostam de coisas diferentes. De qualquer forma, o que me levou até as expedições polares, foi a admiração que tive pelos meus ídolos Shackleton, Amundsen, Nansen, Cook, Gerlache e outros. Eu queria ver as mesmas coisas que eles viram, e ter a experiências que tiveram, sentir o que sentiram. Mas admito que traz uma enorme satisfação, ver os frutos de estudo, treinamento, dedicação, trabalho em equipe (inclusive de muitos que nunca vão para o gelo), te levarem a lugares de difícil acesso, e te trazer inteiro de volta pra casa.